29 de mai. de 2010

INÚMERO

(...) eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? (...) mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver...

(Caio Fernando Abreu)




Era necessário ao menos existir, num lance rápido e exibido, talvez. Diante de uma beleza hostil que não trocava olhares, nem de lado, e impressionava com o ar fresco e confortável de sempre, mesclados aos apontamentos engenhosos e ás perguntas mais pertinentes de todas. E nada mais apreciável que o jogo de mãos, tão bem-feitas, que levava ao queixo para esperar resposta.

Era cada vez mais necessário existir, mudar o cabelo, roupa nova, preta, vermelha e tudo mais que nem houvesse ou fosse preciso. Era olhar sem olhares numa angústia de ser alvo de exame num momento desatento e, pensar no que podia ser.

Os ânimos se desagravam com o passar dos dias, os corpos quase estáticos sequer conseguem cruzarem-se. Achava que não existissem situações que evoluem a grandes golpes mas, o fim do impasse era dado e sem pretensões. Era apenas necessário. Ficar longe, ir para o mesmo lugar, porto de um só que tantos almejam. Depois voltaria, planos, coisa e tal num momento posterior. Antes, no primeiro plano de palavras, descobrira sempre existir e que os olhares é que falhavam. Fosse culpa dos óculos quadrados demais quebrando a delicadeza do rosto, dos brincos, ou do batom desnecessário pois, a boca se bastava, livre de camadas quaisquer.

Os olhos passaram a cruzarem-se e brilharem perfeitos, sem corpos nem nada. Era verdade eles serem bons para preverem essências. Borboletas remexiam na barriga e a voz grave e rouca era como sussurrada ao ouvido dizendo qualquer coisa sem cheiro. Queria que fosse floral.

Existiu mais quando ouviu umas confidências bobas e lhe fora prometida uma encomenda para a semana que viria, um agrado que foi esquecido. Quase foram trocados bilhetes mas, o primeiro nem foi respondido, porque ingenuamente não fizera esforço para disfarçar a caligrafia na poesia colocada às escondidas na mochila vez passada.

O jogo de mãos cada vez mais impróprio, era inimitável. O quase toque excitava de propósito. Achegava-se muito e as costas doíam. Era floral. Desejava sentar-se mais à frente da próxima vez mas, era bom estar ali, procurando detalhes, mesmo vendo que naquele dia a boca não se bastou e brilhou como verniz. Depois a encomenda parou em mãos alheias e mudou de remetente.

As páginas virtuais negavam tudo e não mudavam nunca. Fantasiava que fosse um bom passado mas, não. Chamava atenção trocando o anel de dedo. O jeito era sentar-se mais à frente e tornar a fazer mimos desnecessários, colecionar discografias, ao menos músicas infantis, barulhos, cha-cha-cha ou dedilhados mal conduzidos e sem efeito.

A encomenda de fato não comprometia mas, foi útil para comprometerem-se em comentários despretensiosos. Os acontecimentos se perdem da ordem cronológica depois da idéia, antes nem cogitada, de perder o tino e talvez por tudo a perder. Bastariam algumas doses de qualquer bebida vermelha.

Uma vez, foi como faltar a um encontro nem marcado, de tão certo. Vigiava a porta e tinha sobressaltos se alguém a cruzava. Fechou os olhos, lembrou-se do floral, suspirou e conteve-se. Imaginou aqueles passos resolutos se desfazendo na chuva do caminho. Não viria. Fora em vão a tímida saudação ensaiada dezenas de vezes fronte ao espelho. Abriu-se um vácuo no peito e inflou o apetecimento desmesurado pelos graciosos gestos dos quais não se esquecia. O lembrar era suave, delicado como pólen de margarida porém, lastimoso em ser tão ideal e perdido em tantas significâncias. Teve medo e quando quase esquecia daquele tom persuasivo de voz, e de tudo, recebeu carinhos levados pelo primeiro passante. O vácuo murchou.

Ontem chegou cedo. Era o dia em que sentaria mais a frente. No entanto, pela primeira vez experimentou a sensação do lado a lado, o prazer dos braços roçando enquanto tinha observadas as palavras que escrevia como anotação. Se desta vez descobrira aquela caligrafia peculiar, não esboçou nenhuma reação. E isso já não importava tanto. Tinham almas poéticas e não trocavam palavras ao dizerem o que desejavam. Pensou em poder ter os dedos por entre aqueles cabelos de tessitura inimaginável ou segurar-lhe as mãos a fitar-lhe pensando em tudo que não tinha coragem para falar mas, que um olhar eloqüente diria. Constantemente esperava um sinal, alguma palavra, qualquer coisa dizendo que devia.

Ficou tudo um conformar-se. Nem todas as lágrimas ou fisgadas no peito compensavam ver aquele sorriso prático e modulado que soava como uma carícia. Talvez o princípio se repita e tudo esteja estacionado na espera de outra evolução repentina. E o porto possa ser de mais donos. Pode ser que nada mais mude e a vida inteira seja um estomago embrulhado de tantas borboletas. Ficará sempre longe de bebidas rubras pois, nunca será tempo de perder o tino, é o que acha. Porque nada é compreensível, ainda. De certo, só que a boca se basta, cega, na espera de mais algum detalhe, alguma descoberta. Mas quem sabe.